O tempo vai passando, vamos envelhecendo e amadurecendo. Costumamos ouvir dos nossos pais, avós e mais velhos o batido clichê que o melhor da idade é a maturidade. É conseguir ver as coisas de outra forma, lembrar de atitudes e decisões tomadas quando mais novo e pensar... achamos besteira até começarmos, de fato, a entendere e sentir.
“Ahh, se eu pudesse dar um conselho a ele...”. A serenidade, a clareza, as certezas, tudo muda bastante. Não diria que eu mudaria todos os erros, afinal, nosso tecido nada mais é do que uma costura do nosso passado com os nossos sentimentos. Aquele “jovem”, se a minha idade me permite chamá-lo assim, me fez ser quem sou hoje, mesmo que sem querer, sem saber. Meus acertos e aplausos lembro com felicidade e orgulho, porém poucas vezes. Mas os meus erros e fracassos não passam um dia sem me revisitar. Eles me fazem seguir em frente, repensar, por mais que em público ainda haja dificuldades em alguns pontos, lá no fundo há arrependimento, há mudança de atitude. Mas há coisas que cresceram em mim, que foram alimentadas, que me perturbam cada dia mais.
Certa vez, numa mesa de bar com amigas queridas, ao tom de uma incrível cerveja gelada, ouvi delas relatos de assédios dos mais variados. Numa loja de departamentos, com 12 anos, uma delas foi assediada por um vendedor. Talvez o fato de eu ter uma filha tenha feito aquilo me tocar ainda mais, mas a sensação inevitável é: “em que mundo eu vivia? Como é possível eu descobrir isso, dessa maneira, a essa altura da vida? Que tipo de redoma me construiu? Em que mundo paralelo eu cresci?”. O pior é saber que o mundo foi o mesmo. Cego cuidadosamente num esforço coletivo. Foi uma noite em claro, um choro causado por uma mistura de culpa, por mais que eu não tivesse culpa, mas sentia que tinha.
E todas as brincadeiras e ofensas que fiz, sem nem saber, a colegas de escola, que deviam ter receio de ir à lojas de departamento, ônibus, rua e colégio? Medo de encontrarem vendedores insaciáveis, mas também de gente como eu, com posturas e discursos impregnados de uma carga ofensiva, que jamais entenderei, de fato, o mal que podem fazer.
E todos colegas que precisavam esconder a própria essência, controlar cada movimento, cada gesto, para gente como eu não apontar o dedo e rir, ridicularizar, porque a capacidade de amor deles era diferente da minha? Quantos pagaram com a vida, mesmo que ainda vivos e sem perder a vida, também por minha culpa? Por palavras inconsequentes minhas?
Quantos laços de vida precisarei perder para conseguir mudar ainda mais? Para ser capaz de não rir do que tanto ri? Para ser capaz de enfrentar quem não quer corrigir? Sair da posição de privilégios e defender o óbvio tem um custo necessário. Afastamos muitos que nos acompanham, parte da nossa história, mas nos aproximamos de nós, dos outros.
Que quem crio não veja cores, não veja gêneros, não veja orientação. Que apenas veja. Que seja melhor do que pude ser. Que não descubra tão tarde o óbvio. Que nem precise descobrir.
De que serve tudo, se não podemos ser completos? Somos a nossa própria construção, somos o que vemos, o que sentimos, o que falamos. Mas somos também o que não queremos ver, o que escolhemos não sentir e o que silenciamos.
m.froes
24/06/2020